📖 Diário de Espanha – Confiança se escreve com “ñ”

Há alguns dias, comprei um conjunto de facas num supermercado aqui na Espanha.
Nada sofisticado, 18 euros: Seis facas e um suporte dentro de uma caixa lacrada. Ao abri-la em casa, surpresa: o peso enganava e não havia nada que cortasse dentro.
Dois dias se passaram entre a constatação do erro e o dilema clássico de quem cresceu no Brasil:
“E se vou trocar, vão acreditar em mim?”
Morando aqui há mais de dez anos, ainda estou contaminado pela paranoia preventiva que aprendemos cedo em nossas relações brasileiras: a desconfiança como instinto de sobrevivência. Todo mundo é culpado até que se prove o contrário.
Hoje voltei ao Lidl com a nota da compra e uma explicação rápida do ocorrido.
“Veja se há outra caixa e trocamos?”, sugeriu o simpático atendente. Sem perguntas. Sem supervisor. Sem interrogatório. Confiança.
Voltando a casa, lembrei do Valério, um amigo europeu, nômade digital esses dias no Rio. Impressionado com a beleza da cidade, com o sorriso maroto e fácil das pessoas, com o limite entre caos e ordem parte do charme carioca, o italiano estava intrigado com a peso das palavras chiadas pelos locais. Ele havia me ligado para dizer: “acredita que marquei com alguém aqui na praça e vindo para cá a pessoa mudou de ideia. escreveu que encontrou alguém no caminho e teve que acompanhar a pessoas em algo urgente”. E completou: “nao faz sentido“. Sem a menor cerimônia, o combinado virou sugestão.
Um pouco antes da ligação do passional italiano — imagine se fosse um racionall alemão — desnorteado, havia lido no UOL uma reportagem sobre a ira de fãs de Lady Gaga. Excitados com a notícia da vinda da ídola ao Rio, eles se anteciparam ao comprar passagem e sobretudo a hospedagem para evitar a escalada de preços. Qual foi a surpresa de, há poucos dias da chegada, receber por email a notícia de que seus Airbnb o Bookings da vida haviam sido cancelados. Os motivos alegados eram variados, inclusive reformas nos alojamentos exatamente no dias que os Little Monstres haviam reservado. Em resumo, em bom carioquês: caô!
Eu mesmo poderia ser personagem da reportagem. Havia alugado um estúdio com sete meses de antecedência para o Carnaval no Rio pelo Booking. Três meses antes da chegada, o anfitrião cancelou, e a justificativa era tão convincente e grave que me compadeci: a mãe — ou algum familiar, não me lembro — estaria com câncer e ele tinha que vender o apartamento com urgência para cobrir gastos. Segui buscando alojamento e…bingo! Um mês depois, lá estava o anúncio publicado outra vez pelo triplo do preço.
Não era golpe. Era prática de mercado.
Indignado, liguei para o Booking, e a resposta não foi menos revoltante: como esperei muito tempo entre o cancelamento e a ligação, não poderia ser realojado com os custos pagos pelo anfitrião golpista — essa é a regra do Booking para cancelamentos. Tinha direito apenas ao reembolso. KKKK, ri de nervoso.

Puro suco de Brasil. Do tipo de relação que molda nossa convivência. A gente aprende a duvidar. A desconfiar. A se proteger antes mesmo do ataque. “Porque o bonzinho, no Brasil, só se fode”.
Pedro Cardoso, um grande leitor do Brasil, uma vez escreveu:
E talvez seja isso mesmo.
No Brasil, a gente vive junto, mas separado.
Na desconfiança. Na defensiva.
Cada um por si. Cada um tentando sobreviver ao outro.
Aqui na Espanha, é o contrário. A confiança vem antes da dúvida. Obviamente não porque todo mundo é bom, mas porque as interações funcionam com base na boa intenção alheia.
Saí da loja com minhas facas na mão, contente e pensativo. Feliz de viver do país onde não é comum levar facada pelas costas