Um golpe ao sonho comum

Ativistas pró-Europa se beijam em frente à Porta de Bradenburgo, em Berlim, Alemanha (Foto: Hannibal Hanschke, Reuters)
Ativistas pró-Europa se beijam em frente à Porta de Bradenburgo, em Berlim, Alemanha (Foto: Hannibal Hanschke, Reuters)

A palavra é curto-circuito. Incredulidade, abatimento, desencanto também servem. O golpe dado pelo Reino Unido aos europeus convictos foi feio, meus amigos. Uma parte importante da estrutura que unia o continente ruiu. Os inimigos do projeto comum conseguiram na última quinta-feira, 23, uma inesperada vitória simbólica, cujo efeito foi imediato, e que pode ser devastador para o futuro do clube que agora reunirá 27 membros. Foi o maior revés político da história da UE. E logo no começo verão, que não combina com tempos cinzentos, com tempos londrinos.

O desencanto tem toda a razão de ser. A União Européia é a construção imaterial humana mais alvissareira do século XX. Para nós, de fora, é um pouco difícil entender do que se trata, mas me arrisco, muitíssimo interessado —e fã— que sou desta tentativa que se faz possível a cada dia.

Em realidade, há diversas maneiras de traduzi-la. De acordo com um pragmático afeitos a números, a reunião criada por seis países em 1957, E que ao longo do tempo ganhou 22 novos sócios, surgiu para facilitar que a roda de economia girasse mais engrenada no continente, e mais pujante diante do resto do mundo. Uma união de forças cujo fim seria o maior acúmulo e distribuição de riquezas entre seus sócios.

Era, sabidamente, desde o princípio, uma costura difícil. Seria posta à prova todos os dias por protagonistas com perfis, históricos, presente e perspectiva de futuro diferentes. E de maneira mais complexa ao longo do tempo, quando porventura se juntassem novos sócios.

Homens lêem capa do conservador The Sun, que considerava sair da União Européia como "Dia da Independência" (foto: El País)
Taxista comemora resultado das urnas pela saída do Reino Reino Unido da União Européia

Remetia à figura do malabarista que, testado com mais e mais objetos, consegue manusear todos ao mesmo temoo e produz uma fotografia impressionante.

Para que houvesse chance de dar certo, partiu-se de princípios comuns, como a estabilidade dos preços —posta em prática de fato anos depois, com a criação do euro—, e métricas similares de política econômica e fiscal.

Para uma parte dos mais de 500 milhões de cidadãos dos 28 países em 2016 participantes do projeto, entretanto, a motivação-mor da União Européia sempre foi muito além da pecúnia. Trata-se de integrar pessoas, redesenhar fronteiras, intercambiar culturas, criar um caldo de conhecimento imbatível. Ou quem poderia contra a racionalidade alemã, a inventividade espanhola, a classe francesa e a sofisticação italiana juntas?

Os europeístas convictos têm princípios fundamentais semelhantes. O apreço à política democrática como única maneira possível de resolver os problemas comuns, por exemplo. Por isso mesmo, sonham em, ao serem perguntados de onde são, em qualquer lugar do mundo, no futuro, possam responder: europeus. E não croatas, gregos ou portugueses. Que a bandeira azul estrelada tremule mais alta que as das cores locais. Uma idioma único no futuro, talvez…

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Homens lêem capa do conservador The Sun, que considerava sair da União Européia como “Dia da Independência” (foto: El País)

É ou não é de uma inventividade maravilhosa, ainda mais depois de séculos de batalhas e de acordos por fronteiras, soberania e poder?

Para muita gente que ouvi — do caixa do francês Carrefour que inunda Madri à sumidade na história do continente que parece frequentar todas as tvs –, o Reino Unido nunca se vestiu da alma européia. “Quando estava dentro, estava o mais fora possível, e agora que está fora fará de tudo para se acercar”, li por aí. “Até por sobrevivência: 40% do que o Reino Unido exporta fica na Europa”.

Embora os problemas econômicos de um continente há quase uma década estagnado sem dúvida tenham influenciado em parte do voto britânico, notei zapeando de mesa-redonda em mesa-redonda —sem dúvida o formato mais replicado na tv espanhola—, que para os políticos, jornalistas e pitaqueiros de diferentes matizes políticas, a vitória do isolamento tem menos a ver com economia, e mais com um instinto básico de preservação.

Segundo eles, o Reino Unido profundo — nada a ver com a Londres Babel –, repudia a imigração, ainda mais em tempos de terrorismo irrefreável diretamente relacionado aos de fora. É uma parte da população que está louca para ter a pátria de volta em suas mãos. Para redefinir quem pertence ou não ao país, quem é cidadão ou invasor.

Como bem resumiu um artigo no jornal espanhol El País, o voto trouxe às mentes civilizadas a lembrança dos hooligans, uma gente grotesca que se relaciona com o diferente com desdém, desconfiança, ignorância, numa absurda nostalgia imperial. E sobretudo com falta de respeito e de responsabilidade com o seu entorno,  com undo a sua volta.

Ao que parece, os próximos a deixarem o Reino Unido rumo à Europa são o humanismo, a solidariedade e a amizade. A Europa resistirá.

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