Sobre o direito aos fatos

Vivemos para ver gente intoxicada depois de o presidente do país que mais gasta em Ciência no mundo sugerir que injeções de desinfetante poderiam servir para o tratamento de um vírus que ataca o corpo humano. Desconfio que não por acaso há dias Bolsonaro anda calado sobre a cloroquina. Pato ou Dragão podem surgir em breve no vocabulário presidencial. Corrida aos supermercados.
No horário nobre da tv, um dos filósofos mais populares do país diz que, em meio a uma pandemia transmitida por um vírus novo e altamente contagioso, seu medo é ser obrigado a se proteger. “Quando eu vejo gente cobrando outras por máscara na rua, cobrando por luva, eu sinto cheiro de comissário do povo”. Luiz Felipe Pondé tem medo da ditadura da Ciência. Quer ter o direito de infectar os demais. Fofo. Pondé certamente inspirou-se em Bolsonaro, cujo ídolo é um torturador de cabalouço, mas que se diz muito preocupado com a liberdade de ir e vir do povo: “vide o caso de uma senhora honesta presa em Praia Grande”. Bolsnoraro, sabemos, é cruel a ponto de sair a passear, causar aglomerações de pessoas, tocar nelas e esconder o exame que poderia criar uma nova bolsa de apostas brasileira: quantos o presidente haverá infectado?

Bolsonaro, durante coletiva: ele se esconde de quem o protege (reproducao)

Enquanto isso, na democrática Espanha, mais de 750 mil multas foram aplicadas e quase sete mil pessoas foram detidas por saltar o confinamento. Aqui podemos sair para poucas coisas, como ir ao supermercado ou à farmácia. Desde domingo, os pais estão autorizados a levar os filhos de até 14 anos a passear entre 9h e 21h, nunca mais longe que a um quilômetro de casa. Num país em que os debates politicos na televisão são um esporte nacional, não vi uma crítica sequer à falta de liberdade. Há sim um conversa pública sobre a quarentena pode ser um pretexto para abusos e avanços autoritários por intrusão de dados pessoais íntimos, mas de momento segue a ordem: fique em casa e ajude que o sistema sanitário não colapse. Fomos convencidos rapidamente que é a maneira mais racional de voltar à normalidade, seja o que isso queira dizer (mais debate…)

Cilcista é detido durante o confinamento en Alméria, Espanha (Carlos Barba /EFE)

O problema é que Trump, Bolsonaro e Pondé não são capazes de dar voz ao conhecimento num momento em que ele é crucial para resolver o grande problema da vez. Trump, talvez o ser humano mais egocêntrico do planeta, quer ser ele o descobridor da cura ao vírus. Bolsonaro prefere contar mentiras que afetam a vida das pessoas em nome da liberdade de expressão. E insistir na teoria amalucada que está preocupado com a pandemia e com os empregos, como se fosse o único.
Pondé, o lacrador preocupado com o uso forçado de máscaras, no seu artigo mais recente na Folha de S.Paulo, profetiza: Agora começa a ficar claro como menosprezamos o vínculo entre retórica científica e regimes de exceção. Alucino.

Numa época de tanta incertezas, precisamos estar convictos de uma coisa: ”Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não tem direito a seus próprios fatos”. Um salve ao conhecimento e ao senador democrata americano Daniel Patrick Moynihan (1927-2000), criador deste que deve ser um mantra da atualidade.

One thought on “Sobre o direito aos fatos

  • 30 de abril de 2020 em 06:01
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    Excelente texto. Claro, esclarecedor, sua narrativa é lúcida e prazerosa de lermos.
    Continue a nos fazer refletir .!

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