China, o novo império do mundo. E agora?

O presidente chinês, Xi Jinping, em reunião com o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, em Pequim

Lembro-me bem de aprender com a professora Vasti, no glorioso Santa Maria, em Recife, que uma das características da História era o distanciamento dos fatos. Pode até ser, mas estou seguro que estamos vivendo a história com H maiúsculo, a cada dia, nesses últimos tempos.

Se me parecia impressionante o que a maestra contava sobre Jânio Quadros e suas idiossincrasias, Bolsonaro está aqui para provar que o inferno é o limite; se a Gripe Espanhola parecia um grande mistério, a covid-19 se encarregou de unir o conectado planeta de 2020 a incertezas e especulações sobre o amanhã; se parecia que da Guerra Fria,  aquela que começou em 1 de abril de 1948, após numerosas disputas sobre a ocupação da Alemanha entre os países ocidentais e a União Soviética, havia restado apenas pedaços do Muro em Berlim, Donald Trump acelerou seu retorno, agora com outro algoz, também longínquo, também vermelho, também enigmático.

Sem medo de errar: na imprensa espanhola, a China é um dos assuntos sobre o que se gasta mais tinta e saliva, sobre o qual mais se debate e se chega a conclusões inconclusas. A pandemia e a atitude errática de Trump em lidar com a segunda maior economia do mundo me fazem –como também à maioria dos analistas que leio, vejo e escuto– imaginar que o declínio da maior potência do mundo ocorre a galopadas.

O jornal EL PAÍS, o mais relevante da Espanha e minha principal fonte de informação, vem publicando uma série de reportagens de fôlego a qual titulou “EUA vs China: cenários da nova guerra fria”.

O termo é controverso, diga-se. Naquele tempo, houve uma competição entre sistemas ideológicos que tentou convencer outros países. Agora eles competem por mercados. O governo chinês não está tentando exportar seu sistema.

Seja como for, a reportagem vale cada linha da leitura, sobre a qual faço um resumo a seguir:


“Um regime autoritário contra uma democracia. Uma enorme variedade de hostilidades em todas as áreas, geográficas ou setoriais. Espionagem, propaganda, músculo militar, símbolos. A história, dizem, se repete; parece ser verdade. A Guerra Fria do século XX entre o Kremlin e a Casa Branca ameaça retornar no século 21, desta vez entre o ex-vencedor, os EUA, e a nova potência em ascensão, a China”.  A competição é por influência global — a China, com sua iniciativa Nova Rota da Seda, e os Estados Unidos, com o peso de seus 75 anos como superpotência

Como na primeira Guerra Fria, a disputa deve arrastar o resto dos países a escolher com quer dançar. Neste sentido, a China tem sido muito mais hábil, com o presidente Xi Jinping usando a economia para colocar outros países em sua órbita.

De olho numa reeleição que parece perdida, Donald Trump tem atiçado os ânimos, talvez confiante em conseguir um bom mote para continuar governando os Estados Unidos por mais quatro anos. Um inimigo externo, um perigo iminente, sempre fez bem a qualquer ocupante da Casa Branca. Por isso mesmo, Trump tem sido afinadíssimo de dircurso: “O relacionamento com a China está muito prejudicado”, disse. O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, chegou a declarar o fim da política de reaproximação, alegando que “o mundo livre deve triunfar contra essa tirania”. Do outro lado da mesa, tampouco há trégua. Joe Biden, candidato democrata à Casa Branca, tem enviado mensagens duras contra o regime Xi.

A disputa é acirrada para onde se olhe. Seja a inovação em áreas como inteligência artificial ou veículos elétricos; na corrida espacial – ambos lançaram missões para Marte com poucos dias de diferença – ou em armas ultramodernas, sejam elas termonucleares, convencionais ou quânticas. Agora, também, para obter a vacina que ajudará a resolver a crise mais séria até agora neste século.

A China acredita que seus avanços corrigem injustiças históricas e devolve o país ao seu devido lugar. Há algum tempo – e, é claro, desde o início da guerra comercial – também concluiu que os Estados Unidos são um potência em declínio que deseja impedir a ascensão dela no cenário global para não perder suas vantagens. É uma convicção generalizada: onipresente entre os círculos de poder mas também em conversas dos cidadãos comuns. Pequim atua com crescente assertividade, que aumentou acentuadamente durante a pandemia. Por seu lado, os Estados Unidos acreditam que Pequim ameaça seus interesses estratégicos e compete injustamente na esfera comercial.

Não parece que o grau de confronto entre os Estados Unidos e a China diminua no futuro próximo. Mas há uma diferença capital com os tempos de Guerra Fria, quando os Estados Unidos podiam se dar ao luxo de impor sanções à Rússia porque seus laços econômicos eram mínimos. Esse não é o caso da China.

Armas

Em outubro passado, em comemoração ao 70º aniversário da fundação da República Popular da China, a China mostrou-se ao mundo com as últimas jóias da indústria de armas.  o DF-41 – capaz de alcançar qualquer país a partir de seu território e lançar até 12 ogivas nucleares -; a versão mais recente dos bombardeiros estratégicos H-6N – com um alcance de combate de mais de 5.000 quilômetros; e a JL-2 – um míssil balístico intercontinental para lançamento subaquático. Pequim mostrou ao mundo sua tríade nuclear, seu arsenal atômico pronto para ser usado em terra, mar e ar. Embora ainda estejam longe dos Estados Unidos, os gastos militares chineses já são equivalentes a pelo menos 14% dos gastos globais. E não para de crescer, mesmo em tempos de pandemia. O primeiro-ministro Li Keqiang anunciou no mês passado que o investimento em defesa aumentará 6,6% no próximo ano. E mais: em processo de franca modernização, as chances de Pequim concordar em se submeter a um sistema de controle de armas e desarmamento progressivo são praticamente nulas.

5G

Os EUA reagem à China ao perceber o atraso que se acumula na corrida do 5G e na Internet das coisas. Pequim tinha dado a pista: em maio de 2015, já havia declarado abertamente sua intenção de se tornar uma superpotência inovadora quando lançou o plano estratégico Made in China 2025. A iniciativa, financiada em US$ 300 bilhões, visa transformar a maior fábrica do mundo de produtos baratos em ponta de lança da robótica ou da biotecnologia. E suscita enormes receios no Ocidente, porque consagra o controle estatal da economia que dificulta a concorrência de empresas estrangeiras.

“Na China, o estado patrocina o avanço tecnológico e pode acessar as informações que as empresas têm sobre os cidadãos. Nos EUA, o dinamismo surge das empresas privadas em cujas mãos estão os dados, que monetizaram com sucesso”. Esse acesso das autoridades de Pequim às informações manipuladas pelas empresas tem sido um dos principais argumentos para suspeitar as empresas chinesas. E as dúvidas não vêm apenas dos Estados Unidos. No final de junho, a Índia proibiu 59 aplicativos chineses, ocultando-se em sua segurança nacional. Entre eles, o TikTok, a curta plataforma de vídeo que em 2019 se tornou a mais baixada do mundo. Dias depois, Pompeo sugeriu que os EUA também poderiam proibi-lo e que ele deveria ser usado “apenas por aqueles que desejam que seus dados acabem nas mãos do Partido Comunista Chinês”. O assunto é um dos mais verbalizados por Trump nos últimos dias.

Influência no mundo

O risco de ser pega no meio de uma nova guerra fria está no radar da Europa há meses. Mas a possibilidade assustadora se tornou natural, pelo menos virtualmente, durante a videoconferência dos ministros das Relações Exteriores da UE em 15 de junho, da qual Michael Pompeo participou. “Ele falou abertamente sobre a Guerra Fria”, lembra um diplomata da comunidade europeia com preocupação. “Ele nunca mencionou a palavra China, ele sempre falou do Partido Comunista da China e nunca se referiu a Xi Jinping como presidente de um país, mas como secretário geral de um partido político”, acrescentou a mesma fonte com evidente preocupação.

“Estamos no meio, se não nos movermos, os dois lados nos esmagarão”, alerta outra fonte diplomática. E ela recomenda, como única solução, “aumentar a soberania estratégica em todas as áreas”. “A Europa precisa encontrar seu próprio lugar entre os EUA e a China. Não podemos nos limitar a seguir a tendência que prevalece em Washington o tempo todo”, defende esse alto funcionário da UE. A Alemanha é o parceiro que mais defende seguir un camino próprio, mas a tolerância do governo Angela Merkel com a ditadura comunista de Xi é cada vez mais questionada. E a intervenção de Pequim para encerrar os protestos em Hong Kong por meio de uma nova lei de segurança que ameaça as liberdades na ex-colônia colocou Berlim em uma posição quase impossível de manter.

A abertura na Europa também facilitou um crescente investimento chinês, que passou de apenas 700 milhões de euros em 2008 para quebrar o recorde anual em 2016, com 37.000 milhões.

Preencher o vazio na América Latina

A história recente da América Latina também é o relato da presença dos Estados Unidos na região, seu peso, incluindo participação ou tutela, nas decisões políticas de vários países e seus interesses econômicos. As relações exteriores foram para diferentes governos latino-americanos um reflexo da administração norteamericana, como agora deseja Bolsonaro. No entanto, as oportunidades de investimento que ocorreram em um período de relativa estabilidade também deixaram, desde os primeiros anos do século, um vazio a ser preenchido. E a China, que sempre foi capaz de jogar a longo prazo devido à continuidade das diretrizes de Pequim, decidiu dar essa batalha. Esse jogo, como acontece em outras latitudes, é comercial e ao mesmo tempo geopolítico. O desembarque do gigante asiático até agora tem sido desigual. Às vezes com a cumplicidade dos governantes do antigo eixo bolivariano, da Venezuela ao Equador, passando pela Bolívia. Outras vezes, em meio às dúvidas das autoridades locais ou enfrentando barreiras legais. No entanto, quase sempre conseguiu se estabelecer nos setores de matérias-primas e infraestrutura. Até modificar, pouco a pouco, os esquemas de dependência da região.

“A China tem uma estratégia bem formada. Ela busca conquistar a cabeça de praia e, a partir daí, expandir-se ”, diz Sergio Guzmán, diretor da consultoria ColombiaRisk, usando o termo militar que define o cronograma estabelecido após o desembarque para defender a área até que os reforços cheguem. Geralmente, o faz oferecendo algo em troca, especialmente contratos para a compra em larga escala de carne, soja, mariscos e outros produtos. E os requisitos usuais dos países, especialmente na área de direitos trabalhistas e meio ambiente, ocupam o segundo lugar. O jornal EL PAÍS testemunhou em 2017 a agressividade da exploração mineira de uma empresa chinesa na Amazônia equatoriana, o que gerou um conflito difícil entre o então presidente cessante, Rafael Correa, e um povo indígena da região que parou de apoiar seu projeto político.

A batalha pela influência, no entanto, é travada a longo prazo e não apenas no campo econômico. Apesar de seu pragmatismo, Pequim não desistiu de apoiar um de seus principais aliados estratégicos na região. Ou seja, o regime chavista na Venezuela liderado por Nicolás Maduro, confrontando frontalmente o governo Trump. Esse apoio custou à China entre 50.000 e 60.000 milhões de euros em empréstimos na última década. Os cofres de Caracas, devastados pela má administração e prostrados por sanções, atrasaram o retorno. Maduro ainda deve a Xi Jinping pelo menos um terço. Apesar disso, o território com as maiores reservas de petróleo do mundo provavelmente representa a maior oportunidade de investimento na região. A China não tem pressa. E ali está uma de suas cabeças de praia.

No Brasil, o EL PAÍS vez por outra (aqui) publica reportagens e artigos sobre o aumento de investimentos e interesse chinês.

A consquista da África

Somente somando as viagens à África dos três últimos presidentes dos EUA, George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump, durante os últimos 20 anos do governo dos Estados Unidos, é possível igualar a lista de visitas oficiais do oficial chinês Xi Jinping ao continente (quatro) desde que chegou ao poder em 2013. A conta é muito fácil quando se chega à era Trump: ele não pisou no continente. O último a fazê-lo foi Obama, na Etiópia, em 2015. E não é que ele fosse visita fácil no continente de suas raízes. Seu antecessor, Bush, passou mais tempo na África que Obama. A última viagem de Xi foi em julho de 2018. As viagens oficiais são uma declaração de intenções para o que vem a seguir: crescimento extraordinário no comércio, investimento, cooperação e até a presença militar da China na África. Mas as idas Xi são apenas a ponta do iceberg. A consultoria Development Reimagined, com sede em Pequim, realizou um estudo em 2018 sobre as viagens das delegações chinesas ao continente. O resultado foi espetacular: 79 visitas a 43 países em 10 anos (2007-2017). No topo entre os destinos, a África do Sul, o principal destinatário do investimento direto chinês. Hannah Muthoni Ryder, à frente da consultoria, ressalta que o interesse é “mútuo”. ” Dos EUA, a última grande visita foi feita pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, em janeiro passado. Como apontou o centro de análise do Conselho de Relações Exteriores de Nova York no mesmo mês, a “retórica” ​​de Washington na África tem mais a ver com “neutralizar” a influência da China do que com uma estratégia de desenvolvimento.

A África concentra alguns dos países que mais crescem; a taxa de urbanização do continente é incomparável; a classe média e a democracia estão se consolidando em um bom ritmo, e a necessidade de infra-estrutura de transporte, mas também de comunicação, é premente. E onde há oportunidade…

Pequim conquistou o mercado africano – é o principal parceiro comercial -; É o primeiro investidor em volume de capital e criação de empregos e, sem dúvida, o maior credor. Mas a China também é uma potência emergente no cenário militar. Pequim contribui com 15% para o orçamento de manutenção da paz da ONU. Das 14 operações em andamento, sete são em países africanos. Segundo dados de maio, a China contribui para as 14 missões com 2.538 militares, a maioria distribuída entre Congo, Mali, Darfur (Sudão) e Sudão do Sul. Washington, com 29 soldados.

Como eu dizia no início do texto, vivemos História no presente, e em velocidade frenética. Cenas dos próximos capítulos a cada dia, rumo a um novo mundo, com a China no comando. Melhor ou pior? Quem viver, verá…

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