Diários de Caracas [3]: turista rico, país pobre

Oferta do Mc Donald's na Venezuela: sanduíche, batatas e refrigerante por R$ 2,50
Oferta do Mc Donald’s na Venezuela: sanduíche, porção de mandioca e refrigerante por R$ 2,50

Sexta-feira em Caracas. Antes de conhecer a noite do país de gente animada, entrei num dos restaurantes mais sofisticados e caros da cidade. O El Circo é quase um bunker em El Hatillo, uma cidade colonial a 30 minutos de capital. Na porta, seguranças, no plural, atentos, abrem as portas do carro em total recado que estamos seguros. A Venezuela, aviso aos navegantes, é em 2016 um dos países mais violentos do mundo. Um território onde uma pessoa é assassinada a cada vinte minutos, o que significa que mais de 25 mil perderam a vida somente em 2015.

A hostess do lugar, morena, beleza de miss, sorri simpática e nos dá a “bienvenida”  a outro mundo. Espelhos, focos de luz sobre as mesas, música americana em volume acima do tom, muita gente linda — principalmente casais — e muito, mas muito luxo. Impressionado, sou logo avisado que em Caracas há um japonês ainda melhor, a grife Buddha Bar. Anotado. Senti-me um pouco desconfortável em frequentar um oásis de luxo num país completamente destroçado.

Pois lá estava, e com muita gente, já que ficamos em pé numa fila por mesas. Enquanto esperávamos, recebemos um tablet para adiantar os pedidos, feitos ali online no país de internet super lenta.

Estava acompanhado de três venezuelanos — dois homens bons de prato e uma amiga de um deles que dizia estar faminta. Entre papos que foram da busca enlouquecida por likes em fotos de instagram, ao porquê de tantas venezuelanas ganharam concursos de beleza, passando pelo futuro político do país, os três beberam duas taças de vinho cada um, e eu dois mojitos. Os pratos não pararam de chegar. Eram pequenas e deliciosas porções que mesclavam culinária japonesa com receitas venezuelanas. Todos estavam saciados, felizes. A conta: 44 mil bolívares, cerca de R$ 150.

No Brasil, matemática rápida, um menu parecido sairia no mínimo três vezes mais. Sendo generoso.

El Cine: pratos sofisticados a preço de prato-feito no Brasil
El Cine: pratos sofisticados a preço de prato-feito no Brasil

A Venezuela está em liquidação para turistas, causada pela impressionante perda de valor de sua moeda, o bolívar. Em 2014, um dólar no mercado negro — ao qual o turista tem acesso — passou de 70 a 400 bolívares. Em 2015, atingiu 800. Em abril de 2016, podia ser encontrado a 1200 bolívares. Em menos de dois anos, uma mesma nota se valorizou 17 vezes.

Esses são os valores das ruas, que se conseguem ao sair no saguão do Aeroporto Simón Bolívar, por exemplo, onde doleiros atacam todos que chegam — cuidado ao efetuar a troca no saguão, já que há muita literatura policial (exagerada ou não) sobre o lugar.

Na área de desembarque, junto às esteiras de bagagem, o valor atual oficial ofertado é quatro vezes menor que o do “negro”. Troca-se um dólar por 300 bolívares. E já é um avanço, já que em fevereiro deste ano um dólar no câmbio oficial valia 6,3 bolívares, ou seja: 190 vezes (isso, 190 vezes) menos que o que se consegue sem muito esforço com cambistas.

Fator petróleo

A diferença descomunal entre os câmbios oficial e oficioso é causada por um simples motivo: há trezes anos, no governo Chávez, iniciou-se o controle do câmbio por canetada baseado no preço do petróleo. Em 1999, ano em que o ex-militar assumiu pelo voto da população, o barril valia US$ 6, e 60% da riqueza venezuelana vinham do ouro negro. Durante seu longo mandato de 14 anos, o barril atingiu US$ 145 (em 2008), ou 24 vezes mais que o valor da posse. A dependência só aumentou, e quase 95% da riqueza do país passaram a vir da extração. Com tanto dinheiro em caixa, foi um tempo de bonança no qual era possível domar o câmbio. No período chavista, o preço oficial e o paralelo do dólar eram similares, o dólar valia pouco e a inflação não subia a dois dígitos.

Em 2016, vive-se em outro país. O barril pena para chegar aos US$ 30 — é simplesmente como se a Venezuela fosse rica por alguns anos e empobrecesse cinco vezes rapidamente — e, altamente dependente, não há opções de gerar dinheiro. Essa é a Venezuela de Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez, e esse cenário de falta de dólares em parte explica a variação abissal entre o que o governo quer pagar por uma verdinha e o que o mercado está disposto a dar pela mesma nota.

Preços imbatíveis

Voltando a Caracas, descobri em poucas horas que era um turista rico, embora andasse com poucos dólares. Um dólar, lembre-se, vale inacreditáveis 1000 bolívares (até 1200, bem comprado), ou um real vale R$ 300 bolívares, e com poucos bolívares se faz muita coisa: hospeda-se em pousadas por 3000 (R$ 10) e em hotéis estrelados por 12000 (R$ 40). Dica: pagar a reserva no balcão, e não online, já que a conversão da internet é a oficial, o que faz os preços subirem muito. Viaja-se de metrô com quatro bolívares (R$ 0,01), vai-se de ponta a ponta da cidade por 1000 (R$ 3), coloca-se um litro de gasolina por 1 (R$ 0,003), toma-se um sorvete na rua ou bebe-se um suco por 60 (R$ 0,20), lancha-se no MC Donald’s por 600 (R$ 2), compra-se uma coca-cola de 2l por 700 (R$ 2,5), um quilo de frango por 60 (R$ 0,20) e um de arroz por 45 (R$ 0,15). Entra-se numa balada por 1000 (R$ 3,30), deixa-se o carro no estacionamento por 100 (R$ 0,30), toma-se uma cerveja por 150 (R$ 0,20), assiste-se a um filme comendo pipoca por 2000 (R$ 7). Um diária de faxineira sai por R$ 1500 (R$ 4,5), um caminhão-pipa por 10000 (R$ 33), uma garrafa de água numa máquina de aeroporto 80 (R$ 0,25). Um mês numa academia de ginástica de luxo vale 20000 (R$ 65).

A realidade local é outra. O salário mínimo na Venezuela é de 15000 bolívares, ou R$ 50, e muita gente vive com ele. Para complementar a renda, empresas com um mínimo de empregados devem pagar a seus funcionários 18000 (R$ 60) de cesta-ticket, que serve apenas para comprar alimentos. Total: R$ 4 por dia de trabalho.

A diferença entre a vida do turista e de um assalirado local beira o inimaganinável. Ainda mais absurda quando vi os preços de roupas de marca, caras até para quem tem dólares. Uma calça jeans da linha mais popular da Armani, a A/X, estava exposta por 90000 bolívares (R$ 300) num shopping de Caracas. É mais cara que em Miami, e possivelmente o mesmo preço do modelo no Brasil. É também simplesmente seis vezes o valor do salário mínimo local. E o que dizer de tênis modernos a R$ 150000 (R$ 500), ou 10 vezes o mínimo local?

Inflação

A Venezuela ainda tem mais excentricidades econômicas. Aqui os supermercados e quase todas as lojas não marcam preços, já que esses mudam a cada semana. O país tem a maior inflação do planeta: 70% em 2014, 150% em 2015 e possivlemente 700% em 2016. Sim, entre primeiro de janeiro e 31 de dezembro, os preços em bolívar podem ter subido até 7 vezes. Isso singifica, na prática, que é muito possível que se pague por uma televisão o que se pagava por um carro há até pouco tempo atrás. Ou que um o preço para consertar uma moto hoje seja o mesmo que o veículo custava há um ano.

Para complicar um pouco mais, o governo não divulga os valores da inflação e culpa os empresário por aumentarem preços somente para criar tumulto no país, o que na Venezuela dizem “fazer uma guerra econômica”. É assim que os defensores do governo argumentam contra a subida dos preços.

Aos venezuelanos, claro, resta reclamar: está tudo muito caro, dizem o tempo todo.

Caixas eletrônicos

Para um turista com dólar, a vida segue tranquila. E um fator que aumenta ainda mais a sensação de riqueza é outra situação esdrúxula: a nota de maior valor da Venezuela é a de 100 bolívares (R$ 0,30), e o limite por saque nos caixas eletrônicos é de 4000 (R$ 13). Por dia, são permitidos até três saques do valor máximo, ou R$ 39. Se você tiver sorte e as notas que saírem da máquina forem todas de 100 bolívares, terá que achar lugar para 120 cédulas na carteira.

Turistas sumiram

Apesar de mais esse chamariz  — para os locais uma desgraça — para atrair os turistas, cada vez menos gente desembarca em Caracas ou vai ao Caribe venezuelano.  Em 2015, menos de 1 milhão de pessoas passaram por aqui. É menos que qualquer outro país continental da América Latina. Assustados com a instabilidade, falta de produtos básicos e notícias de crimininalidade que se espalham pelos jornais do continente, o destino passou a ser aventureiro. É, sem dúvida, um lugar chocante e maravilhoso para se notar a capacidade humana de adaptação. E ainda se sentir rico numa pátria na qual seus governantes dizem viver o socialismo do século 21.

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