Já pensou em visitar um zoológico humano? Eles existiram até 1958…

Os protestos antirracistas que começaram nos Estados Unidos depois do assassinato de George Floyd e ganharam o mundo, inclusive o Brasil — turbinados pelo assassinato de um menino preto de cinco anos abandonado à própria sorte pela patroa branca da mãe da criança –, estão servindo para que o mundo reflita sobre todas as formas de racismo. E atue. Também está sendo útil para tirar do baú histórias da barbárie de ontem, que seguem existindo de outras maneiras hoje ao redor do planeta.

Na edição do último domingo, o jornal EL PAÍS nos contava sobre os zoológicos humanos, “racismo disfarçado de ciência para as massas no século XIX”.

Diz a reportagem que “o imperador do Brasil, Pedro II, inaugurou em um sábado de julho de 1882 uma exposição antropológica no Museu Nacional do Rio de Janeiro na qual foram exibidos sete indígenas trazidos para a ocasião que imediatamente se tornaram a sensação do evento. Chegava à América, com pompa e a bênção de um monarca ilustrado, a moda dos zoológicos humanos. Tratava-se de espetáculos iluminados pela colonização que eram muito populares na Europa do século XIX. Serviam a um duplo objetivo: saciar a curiosidade do público e ser objeto de pesquisas que dessem suporte teórico ao racismo científico, a crença de que os brancos eram superiores ao resto dos humanos”. Embora mais documentados, os zoológicos humanos europeus também estão sepultados em uma espécie de amnésia coletiva, dizia a reportagem.

Cartaz da exposição dos seres humanos de Rio de Janeiro. (El País)

Esses eventos, diz a reportagem, expõem a forma brutal pela qual o Ocidente construiu seu outro, como se transformou em espetáculo populações que ele próprio definiu como selvagens” ou “incivilizadas”, explica Marina Cavalcante Vieira, doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de uma tese sobre o primitivo e o exótico nos museus, no cinema e nos zoológicos humanos. “São testemunho de uma face vergonhosa do passado da ciência antropológica e das práticas museológicas”, acrescenta. E conta que eram habituais turnês de um ou dois anos com paradas em exposições universais ou coloniais, circos, museus, teatros e zoológicos. “A taxa de mortalidade entre os integrantes (dessas trupes) era bastante alta. Além de serem usados para a pesquisa e o entretenimento, serviam para fortalecer e popularizar as teorias racistas. Essas exposições “tiveram um papel muito relevante na disseminação do racismo, apesar do fato de hoje termos esquecido em boa medida esses eventos, como se não fizessem parte do nosso passado cultural e científico não tão remoto”, diz Sánchez Arteaga, agora na Universidade Federal da Bahia.

Ambos pesquisaram o episódio pouco conhecido, inclusive no Brasil, no qual sete indígenas foram transformados nas estrelas da exposição organizada pelo Museu Nacional, na vanguarda da ciência brasileira da época e que em 2018 foi quase completamente destruído por um incêndio.

“Os pesquisadores do museu brasileiro afirmavam que os botocudos eram o grupo primitivo mais baixo na escala evolutiva”, segundo Cavalcante, que acrescenta: “A ideia de expor os sete povos indígenas (em 1882) pode nos parecer absurda hoje, mas foi pensada precisamente como uma maneira de popularização científica”. A exposição antropológica brasileira foi apresentada como uma festa da ciência em um país que ainda levaria ainda seis anos para abolir a escravidão dos negros.

Uma das protagonistas mais famosas (na verdade uma vítima) dos zoológicos humanos foi a africana Saartjie Bartmann. Batizada como a Vênus de Hotentote, foi exposta em um teatro de Londres em 1810. As massas podiam ver o exótico com seus próprios olhos e, por um pequeno extra, até tocá-lo. Cientistas de renome a estudaram no Museu Nacional de História Natural de Paris.

O que durante séculos havia sido um espetáculo ao alcance da elite se tornou um espetáculo de massa. Os reis católicos tiveram o privilégio de ver os seis indígenas que Cristóvão Colombo, agora no centro da ira dos protestos antirracistas nos EUA, levou da América em seu retorno à Espanha. Nos séculos posteriores, o comércio de escravos se tornaria um negócio lucrativo que abastecia as colônias com a mão de obra necessária. Doze milhões de africanos levados à força sobreviveram à travessia. Ainda hoje seus descendentes vivem menos e são mais pobres do que seus compatriotas brancos.

Os zoológicos humanos continuaram em alta até o início do século XX. O último provavelmente foi o de vários adultos e crianças trazidos do Congo Belga para a metrópole por ocasião da exposição universal de 1958, em Bruxelas. O embrião da União Europeia havia nascido anos antes.

Ao ler a reportagem, compartilhei meu espanto com amigos espanhóis. Para minha surpresa, a resposta inicial deles foi passar pano para a exposição humana. Um disse: “eles (os expostos) tinham vida normal e depois iam pra casa. A reportagem é sensacionalista. É como os índígenas que hoje têm iphone”. Outro disse. “isso acontece até hoje, obrigam os indígenas a permanecerem nas aldeias para serem expostos”.

No Rio de Janeiro de 2020, existe uma controversa versão do que pode ser considerada uma versão atiualizada dos zoos humanos. Os tours em favela, aproximando turistas sedentos por imagens de casas mal acabadas, fios amontoados e crianças seminuas entre becos. O que eles pretendem lá? Os moradores da favelas, sabemos: um extra para sobreviver. Perverso? Necessário? Ou apenas capitalismo em estado bruto? Vou adorar ler sua opinião nos comentários.

Leia aqui a reportagem completa do El País.

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