A nota pirata do UOL dá uma dica preciosa sobre o funcionamento da imprensa. O que fazer?

Há pouco mais de um ano, eu — e seguramente milhares de brasileiros — choravámos pelos cotovelos a morte de um dos maiores jornalistas do Brasil. De repente, atacado pelo coração, em 10 de julho Paulo Henrique Amorim nos deixou. Quanta injustiça, era só o que eu pensava. O brilhante repórter para mim narrava como ninguém o dia a dia de um Brasil governado por um presidente conhecido sobretudo por ser corrupto após o impedimento de uma presidenta incompetente que não havia cometido crime algum. Revoltante.

Paulo Henrique era brilhante não apenas por ser afiado em seus comentários e por trazer à luz os interesses das empresas de comunicação, sobretudo da Globo, mas também por se adiantar aos fatos. Profético, podemos dizer ao assistir o seguinte vídeo.

Não há ninguém com o brilho de Paulo Henrique, vivemos um vácuo de iluminismo no jornalismo brasileiro, mas felizmente há iniciativas que cumprem a missão básica da profissão: confrontrar o poder, seja em que esfera for, seja de que cor for.

O site Intercept Brasil para mim é o maior exemplo de jornalismo combativo. As revelações sobre a Lava-Jato, por exemplo, são um documento histórico sobre o qual a Globo, por exemplo, não deu nenhum crédito. Paula Henrique Amorim tinha que estar vivo para nos contar melhor os motivos…

Mais: Leia todas as reportagens que o Intercept e parceiros produziram para a Vaza Jato

Larga introdução feita, compartilho essas linhas por um email/newsletter que os assinantes do The Intercept receberam hoje com um título daqueles que esquentam o dedo: “A nota pirata do UOL”. Era um texto de Leandro Demori, editor executivo do site, que vale por quase um semestre de Ética da faculdade de jornalismo, mas também de alerta para qualquer interessado pelos fatos no mundo das fake news.

A mensagem principal é que veículos de mídia que pagam a jornalistas profissionais são empresas que têm interesses, como melhor que eu a reportagem nos conta. Por isso, se você ainda não se deu conta, não há nenhuma crítica na Globo à gestão econômica da crise causada pela pandemia, já que a Globo reza a cartilha de Paulo Guedes. Ou você viu alguma matéria como essa na Globo?

Impossível. E basta assistir ao intervalo do Jornal Nacional para saber o porquê. O que fazer, então, dirá você, se estamos cercados por robots de um lado e empresas cujo interesse é o lucro do dono, do outro? Apoiar o Intercept, diria eu. Até que nos provem o contrário.

Do que estou falando? Leia e entenda:

Olavo de Carvalho durante transmissão no youtube
Depois de semanas de insistência, o Sleeping Giants Brasil conseguiu na quinta-feira que o site de pagamentos e transferência de dinheiro PayPal banisse a conta de Olavo de Carvalho. O ideólogo de extrema direita, que vive do dinheiro que lhe pagam pelas baboseiras que ele profere no que chama de “curso online de filosofia”, reagiu de acordo. Atribuiu a medida a comunistas, o que convenhamos é bem pouco pra quem já disse que Pepsi Cola é adoçada com fetos abortados e que a pandemia de coronavírus não existe.O que causou mais curiosidade foi uma notícia publicada pelo UOL no fim do dia: “Veto de PayPal a Olavo de Carvalho é discriminatório, dizem especialistas”, afirmava a manchete do texto, publicado às 18h44 sem a assinatura do autor (o que costuma indicar que o jornalista não pôde trabalhar com a liberdade que a profissão demanda). A matéria listava a opinião de cinco juristas para quem – como diz o título – o PayPal censurou Olavo.
É o tipo de conteúdo que não diz nada nem ajuda ninguém a entender o que houve. Como eu escrevi no Twitter, dá para encontrar outros cinco especialistas que digam exatamente o contrário, e com argumentos objetivos em vez do desfile de platitudes trazido pela matéria. Opinião tem de monte por aí. Basta escolher a que te agrada e ficar com ela. Se aquilo é a opinião do UOL, então que fosse publicado como editorial. Mas é apenas propaganda disfarçada de jornalismo. O UOL é do mesmo grupo que controla o sistema de pagamentos PagSeguro, também pressionado pelo Sleeping Giants a cortar o acesso de Olavo à sua tecnologia. O PagSeguro, até agora, nada fez.Mas foi então que as coisas começaram a ficar estranhas. O advogado e professor Danilo Doneda, integrante do Conselho Nacional de Proteção de Dados, tuitou a matéria com o seguinte comentário: “Eu fui ouvido ontem pelo @UOLNoticias e expressei posição contrária aos colegas mencionados na matéria, que acaba por apresentar aos seus leitores uma posição uniformizada. Talvez minha fala ou de outros colegas que divirjam saia em alguma outra matéria. Fica o registro”, afirmou.  Em seguida, Doneda deu até uma explicação. “PayPal não é uma empresa jornalística e nem um monopólio. Pode verificar se está de alguma forma colaborando com a propagação do discurso de ódio, e acho meritório que o faça – do contrário estaria lucrando com isto”. “A situação nem sequer é nova. Bloqueios do gênero são costumeiros”.Já deu para perceber que não foi só uma matéria mal feita, certo? E sendo o UOL do mesmo grupo que é dono do PagSeguro, uma plataforma brasileira de pagamentos que oferece exatamente o mesmo tipo de serviço que o PayPal, fica tudo ainda mais evidente. A nota não é jornalismo, é pirataria disfarçada de reportagem.O PagSeguro é uma criação de Luiz Frias, um dos herdeiros do grupo Folha, que publica a Folha de S. Paulo. Frias começou sua carreira no UOL, pioneiro na internet brasileira. Foi dentro do portal que o PagSeguro surgiu, inicialmente como uma plataforma para pagamento de compras online. Hoje, ele oferece uma das máquinas de pagamento com cartão mais populares do país, tornou-se muitas vezes maior que o UOL e está se transformando num banco. Em 2018, Frias amealhou US$ 2,3 bilhões ao abrir o capital do PagSeguro na bolsa de Nova York.Na redação do UOL, ninguém comenta a matéria. Mas o mal estar que ela causou, ontem, era palpável. Até porque é fato notório por ali que, por causa dos negócios dos Frias no setor, qualquer matéria a respeito de sistemas de pagamento online precisam das bênçãos da chefia para serem publicadas. “Foi claramente por conta do PagSeguro”, cravou pra mim, em sigilo, um ex-funcionário que conhece muito bem a casa.Em português bem claro: ao se retirar da disputa pelo dinheiro que alimenta a indústria de ódio e difamação da extrema direita, o PayPal estendeu o tapete vermelho ao PagSeguro. E o banco dos Frias parece ter achado que era o momento de mandar o recado (no mínimo, a extremistas em geral) de que dinheiro conta mais que eventuais pudores a respeito de como ele é ganho. Business as usual.Se mandou mesmo um ‘Oi, sumido’ a Olavo e seus alunos, o PagSeguro está dando de ombros pras próprias regras de serviço, como observou o jornalista Guilherme Amado, da Época. “Olavo viola o item oitavo da política do PagSeguro, que proíbe atividades como ‘usar linguagem ou imagem ou transmitir ou propagar mensagem ou material que denotem ou promovam o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, ou que incitem à violência ou ao ódio’ e ‘agir contrariamente à moral e aos bons costumes'”.Olavo já ligou publicamente o movimento gay à pedofilia, e eu poderia listar mas dezenas de barbaridades como essa mas quero poupar vossos estômagos em pleno sábado de manhã.A questão aí é que Olavo pode, sem saber, ter aprofundado uma disputa em andamento na família dona do grupo Folha. É uma disputa que já vem há algum tempo, desde a morte de Otavio Frias Filho, que alçou a Folha ao posto de mais relevante jornal do país. Com a ausência dele, assumiu a irmã, Maria Cristina Frias, destituída por Luiz Frias – o caçula dos três. A briga envolve o dinheiro do PagSeguro – que seria bem-vindo na Folha numa época de crise aguda no negócio do jornalismo – e pode selar o futuro do jornal.Luiz Frias não é exatamente um entusiasta do jornal. Quando destituiu a irmãdo comando, os boatos de que a Folha seria vendida só fizeram crescer. Olavo de Carvalho é um ingrediente extra nesse caldeirão. Mas um ingrediente bastante picante. Ele já afirmou, por exemplo, que “os jornalistas são os maiores inimigos do povo”. Será uma empresa do grupo Folha a permitir que ele siga ganhando dinheiro com esse tipo de ameaça contra seus próprios funcionários? Pelo jeito, sim. Leandro Demori
Editor Executivo 

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